Palmas
30º
Araguaína
29º
Gurupi
32º
Porto Nacional
31º

As letrinhas miúdas

14 dezembro 2010 - 07h59

Se a sua relação com o Plano de Saúde está como a do torcedor com o time de futebol do coração rebaixado para a segundona ou ainda é difícil como a do político corrupto que se elegeu nas eleições passadas e tenta incutir ao TSE que o seu passado negro não conta para a Lei da Ficha Limpa porque é uma abstração do tempo, a coisa tá pra lá de feia.


Mas pode ser pior ainda. Sim, sempre haverá alguém em pior condição que a sua. Mas não se deixe levar por esse lenitivo. O infortúnio alheio só mostra que você faz parte de uma desgraça maior, e isso é desesperador. Mas nesses casos, infelizmente, o comum é a desgraça alheia gerar resignação.


Para que isso não aconteça lhe contarei um caso surreal, difícil de acreditar e espero que a empatia o faça correr atrás do prejuízo.


Quando dona Maria completou 60 anos precisou negociar com o Plano de Saúde que pagava há vinte anos a mudança de faixa etária. Cumprira ao longo desse tempo fielmente com seu dever de associada: pagava regiamente as mensalidades embora os tempos já fossem republicanos. Além disso, gabava-se com as amigas nas tardes de tricô que quase nunca, ou nunca, não se lembrava exatamente, precisara usá-lo. Com isso acreditava ter acumulado vantagens, como as milhas da Aviação, para a hora que fosse indispensável qualquer negociação.


Com um sorriso foi ao Plano em busca da negociação. A moça, apertada num paletozinho padrão, apertou-se mais com o que teria que dizer à senhora ao consultar sua situação. Pensou na mãe, pensou na avó (não na bisavó, que esta tinha partido muito provavelmente antes da constituição do Plano). Quase foi às lágrimas. Num misto de esmorecimento e alívio de consciência empurrou dona Maria para o gerente.


— Deixa comigo que esses casos eu tiro de letra — disse ele com absoluta tranquilidade.


Ou o homem tinha nervos de gelo ou a experiência (ah! a experiência) tinha temperado seus nervos com aço na lida com tais melindres.


Pois de cara não é que foi solícito com dona Maria, ofereceu água, cafezinho, um lugar para sentar (não se sabe se o choque da notícia que ele tinha para dar ia levá-la ao chão — isso cá com os nossos botões que a experiência o habilitara a dar só os passos necessários para não perder tempo. E ali tempo é dinheiro).


Simulou uma consulta. Demorou um tempo enrolando dona Maria. Tempo exato em que ela vasculhou o ambiente com os cansados olhos míopes, comprovando pela beleza da decoração e dos móveis a pujança da empresa. “São favas contadas”, pensou aliviada.


Abandonou suas digressões para ouvir o gerente que agora falava:


— Dona Maria não há qualquer reajuste na mensalidade por mudança de faixa etária no seu caso...

— Eu sabia — sorriu ela, interrompendo o gerente (bem sabido que não sorriu por último, para que o ditado não fosse desmoralizado).

— Deixe eu concluir, por favor. Não há reajuste por um simples motivo: o seu plano foi extinto aos sessenta anos.

— Mas como? Assim sem nenhum aviso, sem nenhuma carta? — a coitadinha não sabia o que dizer.

— Estava no contrato, dona Maria.

— No contrato?!

— Sim, ali nas letrinhas miúdas. A senhora não leu?

A sua resposta foi quase uma confissão de culpa:

— Eu tenho as vistas fracas.

Ele por sua vez foi lacônico:
— Devia ter aproveitado os benefícios do Plano para ir ao oculista.